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História e Culturas Políticas

A existência de uma linha de pesquisa intitulada "História e Culturas Políticas", no Programa de Doutorado em História, apoia-se num quadro de pesquisas de historiadores do político que, nos últimos anos, têm transitado - na elaboração dos seus trabalhos e na definição dos seus objetos de pesquisa - numa fronteira em que se cruzam a história política e a história cultural.

Nesse espaço, no trabalho de compreensão das motivações dos atos políticos e do pensamento político que lhes é subjacente, esses pesquisadores têm estado às voltas com uma espécie de "código", expresso por um conjunto de referentes formalizados e compartilhados pelos indivíduos e pela coletividade, adquiridos e traduzidos num determinado ambiente cultural. É justamente essa porção, do que já foi nomeado de um "patrimônio cultural indiviso" - experimentado no curso de uma existência, a um só tempo individual e coletiva, por referência aos sistemas de valores, de normas e de crenças compartilhados em função de uma leitura comum do passado; de aspirações e projeções de um futuro a ser vivido em conjunto; da comunhão de uma visão de mundo; da representação de uma comunidade nacional -, que define o conceito e a nossa compreensão mesma do que seja a "cultura política".

Esse entendimento da cultura política com o qual nos alinhamos pressupõe a existência de um conjunto coerente de elementos que, ao se inter-relacionarem estreitamente, constituem um patrimônio cultural e, ao mesmo tempo, que, ao fazê-lo, permitem a definição de uma identidade aos indivíduos e às coletividades que a reclamam. Assim, no interior desse conjunto, uma leitura do passado histórico, com a qualificação positiva ou negativa de fatos, momentos, personagens, compõe-se com elementos de base ideológica e ou filosófica, com definições institucionais traduzidas no plano da organização política do Estado, com idealizações de concepções acerca da "boa sociedade", com utilizações de uma linguagem política e de um vocabulário, de símbolos, ritos, gestos e representações visuais, que confluem para uma mesma visão de mundo a ser partilhada.

A esse entendimento, agregam-se três pressupostos que norteiam os integrantes da linha de pesquisa: o primeiro é que, no âmbito da atenção especial que a historiografia dá hoje ao fenômeno cultural, as culturas políticas ocupam um lugar particular como um dos elementos da cultura de uma sociedade dada, precisamente aquele que concerne aos fenômenos políticos. O seu campo de aplicação, convém reiterar, inscreve-se no político. O segundo é o caráter sempre plural das culturas políticas em um momento dado da história, em uma sociedade determinada ou em um país específico. No interior de uma mesma nação, existe uma pluralidade de culturas políticas, cujos territórios são demarcados por limites que correspondem às normas e aos valores compartilhados. Isso significa que rejeitamos a ideia de que existe "uma cultura política nacional a ser transmitida de geração em geração por mecanismos de herança". O que há são constructos, que privilegiam o momento da fundação como um dos referentes chave nas experiências de criação das comunidades políticas do mundo antigo e das suas versões na modernidade, como é caso das comunidades políticas nacionais. Neste ponto, cabe refletir também acerca do impacto do fenômeno da globalização sobre o universo das culturas políticas contemporâneas. Ao redefinir o papel do Estado-nação, ao diminuir e relativizar o poderio dos Estados Nacionais, ao impor a realidade das organizações supranacionais e das comunidades econômicas, a globalização faz com que o Estado permaneça um lugar de política, porém cada vez mais esvaziado de poder, num cenário onde está em curso um efetivo movimento de mundialização da cultura. Pensando em cenários de mudanças, admitimos que, em determinadas circunstâncias históricas, quando o plano dos valores compartilhados é bastante extenso, uma cultura política pode se tornar dominante frente às demais. Isso não significa, no entanto, a anulação da existência de culturas políticas antagonistas, nem de uma convivência, ainda que conflituosa, lado a lado, ou mesmo, eventualmente de uma certa composição e troca de influências entre elas. Daí deverem ser tomadas nesse seu movimento e não como um dado imóvel, aprisionado numa tradição política. O terceiro é que uma cultura política não é uma mensagem unívoca. Ela é a resultante de uma composição de influências diversas, de uma multiplicidade de fatores, oriundos dos vários vetores por onde passa a integração da cultura política, o que nos interdita de pensar que uma influência exclusiva se exerce sobre os indivíduos e a coletividade. Isso porque os canais dessa integração estão colocados na família, que fornece uma primeira bagagem política; na escola, que transmite e socializa referências básicas de uma cultura política; pelos grupos de convivência social por onde circulam os cidadãos, tais como as igrejas, os locais de trabalho; também os partidos e as sociedades políticas; a imprensa; os quais fornecem aos indivíduos e aos grupos uma chave de leitura do real. Esta última, por sua vez, é constantemente reelaborada pelos homens no exercício da construção da cidadania política.

Para além dos canais da socialização política tradicional, encontramos a presença da memória, elemento essencial na análise das culturas políticas. Colocadas, como já se admite em certas análises historiográficas, na "encruzilhada das representações coletivas do passado, do presente e do futuro", as culturas políticas são codificadas e transmitidas pela memória. Assim, a invenção dos lugares de memória, as políticas de conservação do patrimônio, as culturas do museu e suas estratégias de utilidade, as comemorações e jubileus, os monumentos, as representações do passado na historiografia, na literatura e no cinema, estão no centro das problemáticas de criação, consolidação, difusão e cristalização das culturas políticas. E a sua aquisição e interiorização seguem motivando os atos políticos. Por fim, tomando a cultura e a memória como universos onde são elaboradas as experiências históricas, podemos reler historicamente a modernidade: à luz das narrativas heterogêneas que a constituem, explorando a complexidade da narração como uma forma de representação do passado, bem como na sua relação com a tradição.

Dessa forma, a linha de pesquisa História e Culturas Políticas permite que contemplemos o estudo das interpretações e do pensamento da modernidade, das implicações cívico-políticas dos fatos da tradição cultural; que construamos uma grade de leitura do político através da análise histórica das culturas políticas plebeia, monarquista, republicana, liberal, autoritária, socialista, comunista, anarquista, católica, nacionalista, milenarista, entre outras, nas suas perspectivas, míticas, utópicas e imaginárias, na sua tradução doutrinária e ideológica, na sua relação com a memória, os símbolos, os ritos e as liturgias políticas, e nas suas expressões institucionais organizadoras da vida numa sociedade política. Temáticas distintas têm sido abordadas na linha, sobretudo aquelas relacionadas à história intelectual, à história dos conceitos, à história do livro, da censura, das edições e da leitura, e à história político-cultural, dentro da qual tiveram destaque, por exemplo, os estudos sobre o anticomunismo, a república no Brasil e o republicanismo, diferentes linguagens (as canções populares, as caricaturas e o cinema, por exemplo), a televisão, o autoritarismo, os sistemas de informação, a imprensa, a experiência do exílio etc.

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